Saturday, December 16, 2017

A razão do universo

Há quem conte piadas, há quem conte mentiras, há quem conte causos, há quem conte vantagem, há quem conte histórias. Ela, por sua vez, contava os peixinhos nos aquários e as pipocas no chão do cinema. Contava os olhares, os minutos, os beijos, contava flores e folhas, sorrisos e abraços. O que se conta revela a natureza dos indivíduos: alguns contam para se exibir; outros, para entreter. Ela conta, pois, acima de tudo, busca a razão do universo.

Monday, October 23, 2017

Saudades

Tenho excesso de saudades. Tenho saudade de dividir a banheira com meus irmãos na infância. Saudade do cobertor quentinho nos dias de chuva na casa da vovó. Tenho saudade do cheiro do mar. Tenho saudade do beijo na porta da escola. Saudade de campos verdes e de estradas de terra. Saudade de todas as idades que já vivi, das cidades que já cruzei, dos amigos que vieram e se foram nas encruzilhadas da vida. Tenho tantas saudades, que tenho saudade até de coisas que nunca conheci: tipo, saudade dos tempos em que a Bahia era como nos livros de Jorge Amado. Saudade de um abraço quente, razão do universo. Mãe.

Friday, September 08, 2017

força e coragem

Desde pequena lhe ensinaram a buscar abrigo quando chovesse. A fugir do vento. A evitar arbustos espinhosos. Um dia ela se cansou. Correu por chuva de vento e deixou que os espinhos da vida lhe marcassem com ensinamentos. Tropeçou, levantou-se, tropeçou de novo, ergueu-se outra vez. Algumas rugas surgiram com o tempo, e deixou de ter aquela pele sedosa que os meninos da escola admiravam. Hoje ela não é boneca, não é imagem, tampouco conquistou o mundo e não se diz emancipada. Ela é somente ela, força e coragem. 

Thursday, August 17, 2017

beijo roubado

Ilhas são portos seguros. Estrelas são desejos inconscientes. Pássaros, a liberdade. Palavras confundem mais que explicam. Um formigar sobe o peito e acaricia o pescoço. O rosto se aquece. Lembranças se iluminam. Um cavalo galopeia pelo vasto infinito, o dia se põe por trás de um monte, uma pena voa pelo transparente. Árvores são o pai, os galhos abraçam. O sol é a mãe: luz e calor. O arco-íris é a beleza da trilha impossível. Quando chove, quero correr de braços abertos por ruas e por becos e bater, encharcado, à sua porta. Ver o seu rosto surpreso ao me ver entregue à tempestade. Talvez lhe roubar um beijo e correr de novo chuva a dentro para longe, sem que nós dois jamais entenderemos o que de fato aconteceu.

Tuesday, August 08, 2017

para nunca mais voltar

Ela costumava dizer tudo o que pensava. Sempre teve muitas opiniões. As pessoas a ouviam com atenção e, na maioria das vezes, concordavam. Ela sentia-se importante. Até que um dia descobriu as suas opiniões equivocadas. Acordou, certa manhã, e pensou todas as ideias ao avesso. Ficou envergonhada por um instante, então sentiu um esquisito estranhar: se ela esteve equivocada, todos que com ela concordavam também se equivocavam. Pensou em conversar com os amigos e explicar que o mundo não era bem assim, mas se reteve na possibilidade de estar novamente enganada. Descobriu que as opiniões são como os passarinhos, que nascem, se desenvolvem e depois batem asa, para nunca mais voltar. 

Friday, July 21, 2017

ajudar é um caminho espinhoso

Ela nunca se esquecerá daquele sonho estranho com um avião. Viajava num imenso jato particular. O avião, de tão gigante, poderia transportar milhões de pessoas, mas ela era passageira única. Certa hora, ela olhou pela janela e viu uma multidão de pessoas famintas, pedindo uma carona, implorando por salvação. Então ela mesma se transformou no avião. Querendo ajudar os milhares de famintos, ela tentou aterrissar, mas uma violenta turbulência impediu que pousasse, e a multidão inteira começou a chorar. Despertou do sonho de coração partido. Caminhou até a janela e observou a rua calada na madrugada chuvosa. Havia um mendigo passando frio em baixo de uma marquise. Quis lhe levar um cobertor, mas teve receio de descer para a rua, sozinha, no escuro. Sentiu-se impotente; havia tanto a fazer pelos outros, sem que ela, de fato, conseguisse fazer. Naquela noite ela descobriu que ajudar os menos favorecidos não é uma simples questão de ter um bom coração: ajudar é um caminho espinhoso.

Saturday, July 15, 2017

a felicidade é uma casa sem paredes

Quando criança, ela sonhava em ser cantora. Fazia apresentações para os adultos, imitando a estrela do momento. Depois, no início da adolescência, sonhou em ser modelo. Era um sonho um pouco mais sério que o de ser cantora. Reclusa em seu quarto, longe de olhares estranhos, desfilava na frente do espelho e se imaginava nas passarelas do mundo. Finalmente, já quase adulta, sonhou em ser atriz. Repetia os diálogos das telenovelas e se entregava ofegante nas cenas de beijo. Os anos correram, a vida enveredou por caminhos inesperados; dos sonhos de fama fez-se a realidade do sustento diário. Hoje, quando ela pensa para trás, um sorriso sincero quebra a dureza rotineira. Ela se dá conta de que foi primeiro cantora, depois modelo, então atriz. Ninguém, jamais, há de nos tirar os sonhos, ela percebe. E, às vezes, de noite após uma longa jornada de trabalho, ela fecha os olhos e se enxerga nos mesmos palcos em que foi estrela quando na idade dos sonhos. Os holofotes imaginários ofuscam qualquer frustração. Livre ela se sente, pois livre ela é: a felicidade é uma casa sem paredes.

Thursday, July 06, 2017

ela é simples e simples encanta

Ser complexo é buscar metáforas indecifráveis; é dificultar o fácil; é fazer curvas sobre retas. Ser simples é dizer bom dia; é sorrir, é dar um abraço; é tomar banho de chuva. Ser complexo é analisar cada sentimento. Ser simples é sentir o sentimento, sem analisá-lo. Ser complexo é conhecer receitas sofisticadas. Ser simples é fechar os olhos e buscar o sabor de tangerina na esquecida infância. Ser complexo é a tentativa de explicar a existência: ser simples é existir. Ela dança ao vento, e suas pegadas se espalham pela areia. Ela mexe os lábios quando pensa. Ela é simples e simples encanta.

Friday, June 30, 2017

experimentar a grandeza do universo

Em que você realmente acredita? Digo, lá na honestidade profunda, onde os olhares estranhos não alcançam. Pense na sua alma como um livro secreto que só pode ser decifrado com uma lanterna a pilha debaixo do cobertor. O que estará escrito nesse livro? Teria alguma relação com aquilo que você tenta, desesperadamente, mostrar de si ao mundo? Você desconfia ser uma fraude: o mundo não gosta de verdades. O mundo é um grande teatro e vive de atores que desempenham, com perfeição, seus respectivos papéis. Ser verdadeiro é pôr o equilíbrio em risco. Em que você realmente acredita? Às vezes, é fundamental se fazer essa pergunta. Não para contar ao mundo; mas para experimentar a grandeza do universo.

Tuesday, June 27, 2017

quando vejo meu amor passar

Quero dizer verdades. Sugá-las de cada labirinto de minha alma e despejá-las sobre a humanidade. Deixar minha voz ecoar por ruas e por esquinas e deixar o mundo saber de seus equívocos e de suas belezas. Pintar algumas paredes de cinza e outras de azul. Explicar que o nascer da lua é gratuito e que é de beleza igual, visto do hotel de luxo ou do casebre no morro. A humanidade embrulha as belezas em clichês. Pensa que tomar champanhe numa beira de piscina é viver mais intensamente que beber água de riacho na floresta. Quero convidar a humanidade a sorrir; a deixar os olhos brilharem; a sussurrar sonhos; a respirar esperanças; a sentir o mundo girar na ponta do coração. Quando vejo meu amor passar, quero dizer verdades.

Wednesday, June 21, 2017

a menina e a montanha

Alguns rapazes, sempre implicantes, inventaram para a menina que havia um mestre no topo da montanha, com respostas para todas as dúvidas do universo. Ela, mergulhada em questões existenciais, subiu a trilha ardilosa até o cume do monte. Chegando lá, percebeu que fora enganada e que não havia mestre algum. Chateada, sentou-se sobre uma pedra e espiou os horizontes distantes. Permaneceu lá por longas horas, e o olhar amadureceu. Como se, de repente, compreendesse cada uma das palavras que lhe roubavam o sono de madrugada. Quando retornou, os rapazes perguntaram, em tom de ironia, como fora o encontro com o mestre. Ela sorriu e respondeu que eles estavam enganados, não havia mestre algum no alto do monte. Os rapazes ameaçaram rir, quando a menina completou “na verdade é uma mestra, uma mulher; e ela me mostrou que vocês e eu, apesar das implicâncias, um dia seremos as melhores memórias uns dos outros.” Os rapazes, atônitos, disfarçaram a incompreensão e dispersaram. No dia seguinte, subiram até o alto da montanha, na esperança de encontrar a mulher sábia, mas apenas se depararam com uma pedra vazia.

Friday, June 16, 2017

medo de dizer bom-dia

Eu sempre tive muitos medos. Ainda tenho. Há quem afirme que são inseguranças, mas eu gosto de dizer que são medos. Inseguranças me parecem descrições de livros de ciência; medos são a vivência do dia a dia. As vezes, tenho medo de ter os medos errados. Tipo, ter medo da lua, quando, na verdade, eu deveria ter medo da escuridão. Correndo contra o tempo, tenho medo de que meu tempo já se tenha passado há muito tempo. Como a nuvem que vem para trazer uma sombra inútil à noite. E quando minha alma gêmea passa por mim, tenho medo de dizer bom-dia.

Thursday, June 15, 2017

a flor no deserto

Lá vou eu levar minhas pilhas coletadas para jogar fora, como sempre, no ponto de coleta do supermercado da esquina. Chego lá para descobrir que o estabelecimento não recolhe mais as pilhas.
Na mídia brasileira corre a indignação com o fato de que Trump deixou o acordo climático de Paris. Olho ao redor e penso que o acordo climático é o de menos perto do descaso generalizado com o meio ambiente no Brasil.
Nossos rios urbanos são valas de esgoto ao céu aberto. As baías perto de cidades são bacias de poluição. As pilhas e lâmpadas não tem descarte adequado. Nas praias, o lixo fica na areia. Nos mercados, as sacolas de plástico se multiplicam e multiplicam. A reciclagem é iniciativa de poucos. Tenho amigos, formados e estudados, que até hoje não separam o lixo reciclável, sob a desculpa de que "no meu prédio não tem coleta seletiva". Eu penso que reciclagem não é conforto, é consciência e dá trabalho.
Enquanto penso sobre tudo isso, três tiros são disparados na subida de uma favela perto de casa. Algumas pessoas se jogam no chão, assustadas, outras seguem como se tiro fosse parte inevitável da rotina. Eu, confesso, fiquei no grupo dos que se acostumaram, apenas apressei os passos, carregando minha sacola de pilhas ainda sem destino.
Pode haver conscientização ecológica enquanto não há paz? Seria a crônica agressão ao meio ambiente apenas outra face de nossa natureza violenta?
Lembro do desastre da Samarco e percebo minúscula minha iniciativa de preservar a natureza, ao descartar as pilhas de forma adequada. De noite, quando olho para o céu, percebo o quão minúsculo somos todos nós. Então, se for para comparar minhas ações com escalas de grandeza, é melhor sentar de baixo de uma árvore e esperar a vida passar. Do ponto de vista universal, tudo que se faz, por maior que seja na concepção humana, é um pingo no infinito.
Vou procurar por outro lugar para descartar as pilhas. Que a humanidade não desista perante as dificuldades de tentar fazer o que simplesmente é certo. O milagre está nos detalhes: na singela flor que sobrevive no deserto.
Encoraja pensar que, quanto maior for o deserto, maior é o milagre da flor solitária.

Monday, June 05, 2017

velejar pelas verdades do mundo

Corro na beira do mar e sinto o universo grunhindo sob os meus pés. A terna espuma branca me guia pela noite. Alguns casais namoram longe dos postes da calçada, e sentem-se invadidos quando passo por eles. Finjo ignorá-los, para que possam se eternizar nos braços um do outro. A cidade ilude, a maresia alerta. Sigo correndo. Percebo uma luz na escuridão do mar e imagino um navegante perdido no horizonte negro. Paro e respiro. Sinto o coração se acelerar no céu da boca. De um lado, as milhares de luzes da cidade, do outro, a luz do navegante solitário. Quem corre risco de se perder? Nós na cidade ou ele em alto-mar? Penso que já me perdi há muito tempo e que preciso ter meu próprio barco, para me encontrar. Velejar pelas verdades do mundo, longe dos holofotes da vaidade.

Tuesday, May 30, 2017

ser livre

O que vou dizer hoje é que você não deve prestar tanta atenção nas coisas que lhe acontecem. Ao invés disso, perceba o que você sente quando algo lhe acontece. Muitos acontecimentos são influenciados por fatores que, em princípio, não podem ser controlados. Mas o que você sente quando algo acontece, esse sim é um fenômeno que cabe unicamente a você. É a história da menina que ficava triste, pois um menino que ela idolatrava viva lhe debochando. Até que a menina deixou de idolatrá-lo e, no mesmo instante, ela parou de se entristecer com os deboches. O menino, quando percebeu que ela não mais se entristecia, parou de debochar, pois a implicância perdera o sentido. E a menina, agora livre, interessou-se por outra pessoa, que lhe correspondeu de coração.ser livre

Monday, May 15, 2017

o amor é a pedra fundamental do universo

Hoje um ladrão furtou o celular de uma senhora. O ladrão estava acompanhado de um pivetinho, de, no máximo, 5 anos. O ladrão fugiu e a população pegou apenas o pivetinho. A notícia boa é que a maior parte do grupo que pegou a criança viu que se tratava apenas de uma criança. Seguraram ele e esperaram a policia chegar. A notícia triste é que havia pessoas querendo espancar o menino. Adultos de 40, 50 anos, querendo machucar um criança de cinco anos, que sequer fora autor principal do roubo. Então percebo o que a violência faz ao brasileiro: estamos perdendo a essência humana. A face silenciosa da violência é que ela recruta nossas almas. Compaixão vira ódio, e o mundo passa a girar em torno da necessidade imediata por segurança. Precisamos de segurança, e quem ameaçá-la é considerado inimigo passível da pena de morte. As vezes, o ódio me alcança também, e temo por minha individualidade: tenho medo de virar mais um desalmado nesse mar de zumbis, pregando a mesma ideia intransigente de combater a violência através da violência. Como se picada de cobra se curasse com picada de cobra. O amor é a pedra fundamental do universo.

Friday, May 12, 2017

somos seres passageiros

A certeza de hoje é a dúvida do amanhã. O azul, que hoje fascina, amanhã é rosa. A música preferida cai no esquecimento, e outra melodia invade a mente. Alguns amigos de ontem agora já não o são mais. Amores vão, amores vem, inverno, primavera. Ídolos evaporam, outros se firmam, invertemos a opinião. Trocamos os quadros nas paredes, trocamos de paredes, corremos na imensidão. Somos seres passageiros; em vida.

Tuesday, May 09, 2017

coragem

La longe vi o sol brilhar. As montanhas distantes se agigantaram. A luz das nuvens trouxe cheiros de ventos espalhados. Pássaros cantarolavam poemas de navegantes eufóricos. A grama alta dançava. Abelhas. Vi-lhes as asas douradas, e o sabor de mel encheu de favas meu coração. A esperança é uma melodia sussurrada de trás para frente. Deixei meus lábios sonharem. Fiz um ramo de flores imaginário e o entreguei à saudade. A vida me sorriu numa paz há muito esquecida. Felicidade é assunto da coragem: você se pertence.

Tuesday, May 02, 2017

estrelas na imensidão do céu

Amor, ódio, amizade, desprezo, admiração, intolerância, raiva. Nossas emoções são essencialmente ligadas a outros seres humanos. Quando sentimos, na regra, sentimos algo por alguém. Amor pelo filho, raiva do vizinho, desprezo pelo marginal, admiração pelo ídolo. Mas o que sentimos por alguém nos diz absolutamente nada sobre esse alguém; diz-nos apenas algo sobre nós mesmos. Quando temos raiva do amigo, essa raiva não pertence ao amigo, ela é nossa. Essa raiva não nos conta uma história sobre o amigo, mas uma história sobre nós. Assim, as emoções são o espelho da própria alma. Nossos sentimentos por outros são a revelação de quem somos. Tolerar o próximo é viver em paz consigo. Perdoar é compreender as próprias limitações. Estrelas na imensidão do céu; vasto é meu coração.

Monday, March 06, 2017

o amor e as lágrimas

Ouço a palavra amor, e a imagem que vem a mente é de um rosto coberto por lágrimas. Não sei relacionar o amor a um casal feliz correndo pela grama verdejante. O amor, na minha concepção, é tão absoluto que a felicidade não o alcança. É um pássaro no invisível. É o beijo prisioneiro dos próprios lábios. É a luz da caixa de som no quarto escuro. É o vento que se espreme pela fresta da janela. É o barulho da chuva no vidro. É a árvore que suporta a tempestade. É o senhor com dificuldade de se erguer do banco da praça. É a chamada perdida no telefone. O amor é a corrida contra todos, inclusive contra nós mesmos. É a grandeza do impossível. É a lembrança daquilo que não aconteceu. É o abismo da razão. Na solidão da alma, as lágrimas são verdadeiras, e o sorriso engana. Ouço o galope dum cavalo numa estrada de terra batida. Abro os olhos, está escuro: à noite, eu me pertenço.

Saturday, February 18, 2017

apenas ser e nada mais

Ser feliz, ser persistente, ser independente, ser diferente, ser amável, ser gentil, ser forte, ser tolerante. Há tantas regras, conselhos e ditados de como se deve ser, que esse “ter de ser” esgota a alma. Que tal apenas e simplesmente ser? Sem adjetivo: ser. E nada mais.

Saturday, February 11, 2017

quero me perder de novo

Hoje eu me perdi e não me reencontrei. Para ser sincero, não quis me reencontrar. Desejei somente vagar por meu mundo paralelo em que o dia a dia não sabe me importunar. Onde as flores nascem de cabeça para baixo e os pássaros se calam curiosos. Aqui a noite é eterna, desde que eu não vá dormir. Fecho os olhos e sinto que não sinto. Abro a geladeira e nada retiro. Releio alguns trechos de textos que me agradam e finjo que as palavras são minhas. Imagino o sol nascendo e o despertador quebrado. Imagino alguém entrando no meu quarto e encontrando a cama vazia. O sono se aproxima, eu reluto, mesmo sabendo que terei de acordar cedo. Penso em algo que me foge. Por fim, adormeço. Desperto de manhã no reencontro com o compromisso. Estou com muito sono, mas sem arrependimentos. À noite, quero me perder de novo. 

Thursday, February 02, 2017

o milagre e a eternidade

As vezes enxergo o milagre por um fugaz instante. De repente, reconheço a impossibilidade lógica de tudo que existe. Como assim, uma carta de amor? Como explicar que da poeira do universo evoluiu um sistema de vida que acabou por permitir a existência de uma carta de amor? Quando percebo a grandeza desse processo de criação, tudo de negativo perde o significado e só o que permanece é o milagre: singelo, delicado e absoluto. É um palácio de cristal brilhando na imensidão de uma planície azul. Tão improvável como o ato de eu estar escrevendo essas linhas. Tão fascinante como o fato de você estar se identificando com as minhas palavras. Pense nisso: da poeira do universo evoluiu essa comunicação que gera um instante de verdade entre nós. Nuvens que se transformam. Caminhos; eternidade.

Tuesday, January 24, 2017

o cercadinho verde-enferrujado

No limite da cidade havia um parquinho para as crianças. Era um cercadinho verde-enferrujado, que ocupava o centro de um terreno baldio de terra batida. Dentro do cercadinho, o escorrega, o balanço e o trepa-trepa. Um grupo de crianças se alternava nos brinquedos, enquanto os adultos responsáveis se ocupavam com smartphones. Tempo nublado. Uma das crianças andou às grades do cercadinho para observar uma poça de água que se formara durante a última chuva, no terreno baldio. A poça parecia tão mais divertida que o parquinho. Percebeu a porta do cercadinho destrancada e os adultos distraídos. Escapuliu. Tirou os sapatos e pisou no iniciozinho da poça. Sentiu a lama se espremer por entre os dedos dos pés. Riu alto. Curiosas, uma por uma as demais crianças fugiram do cercadinho e foram se lambuzar na poça d’água, sem que os adultos notassem. Brincaram por divertidos minutos até que retornaram despercebidos. Mais tarde, ao chegar em suas respectivas casas, os adultos notaram, com estranhamento, que os pés das crianças estavam sujos de lama. Não notaram, porém, que as crianças sorriam como nunca antes. Não perceberam o brilho da aventura nos olhos dos pequeninos. Deixaram de ver a magia, apenas a lama nos pés. Um dos adultos pensou que o parquinho deveria ser reformado com urgência, talvez precisasse de grama sintética. Outro decidiu comprar sapatos melhores, para manter os pés de seu filho limpos. Outro ainda pensou em perguntar ao filho como foi que sujara os pés, mas havia cinco novas notificações no smartphone, e esqueceu o assunto.